06 junho, 2007

Pai!


Quando era menininha, se algo me assustava, se o meu pequeno mundo me escorregava da mão, a segurança e a protecção vinham através destas palavras - Pai! Pai!
Nunca tinha pensado, ou nunca quis perceber, porque vinha sempre o teu nome em primeiro lugar, pai. A tua figura serena, a tua voz, simultaneamente, grave e meiga, tinham o condão de me tranquilizar, de afastar o "papão". Com firmeza, com afecto - imenso - vigiavas os meus "passos". É assombroso o que o amor pode fazer! Contigo eu ignorava o escuro, o silêncio da casa, o lobo mau. Contigo era tudo tão simples e transparente.
Só por vergonha, sabes, não grito, ainda, pelo teu nome. E, também, porque sinto que chegou a hora de tu chamares pelo meu, de ser eu a abraçar-te, de prender as tuas mãos nas minhas e de dizer baixinho - Estou aqui! Não vês que estou aqui?!
Preciso de acreditar que vais estar sempre por perto, que nunca partirás. Sempre te vi eterno. Não podes desiludir-me. Vejo que estás cansado. Cada dia mais próximo da grande viagem. Mas, por favor, não te alheies da vida. Não te alheies de mim. Ainda não.
Já vi a morte algumas vezes - tu, muitas mais . Conheço a sua figura negra, gélida, indecifrável, inclemente. Por isso não deixarei que ela se aproxime de ti, não deixarei. Quero que, como nas estórias que me contavas, o amor vença sempre. Até a morte. Sempre nos habituaste à sua presença. Sempre nos ensinaste que era necessário encará-la com serenidade, como algo que faz parte de um ciclo. Mas vou desobedecer-te. Fecho as portas, as janelas e não a deixo entrar. Enganá-la-ei, farei batota, mas impedirei que ela se aproxime mais de ti. Não quero o consolo de uma lembrança. Não quero o teu sorriso numa fotografia. Quero a tua presença. Quero a calmaria segura do teu olhar.
Li algures - pouco importa onde - que sentimentos e afectos não se aprendem na escola. Que engano. Sentimentos, emoções, partilha - até a bondade e a maldade - se aprendem na escola da vida. A nossa aprendizagem - sempre o afirmaste - é feita através das experiências boas e más com que a vida nos sorteia. Mas, em todas as escolas, há os bons e maus alunos. Há os génios e os sofríveis. Há os que deixam o parceiro "partilhar" o seu rascunho e há aqueles que patenteiam todo o seu saber e conhecimentos de uma forma egoísta, demasiado calculista. Infelizmente, são quase sempre esses os "vencedores". Não carregam sonhos, apenas interesses - os seus. Acautela-te desses, filha. Acautela-te desses - dizes... meio irónico, meio conselheiro.
Tenho consciência de que não tenho sido uma boa "aluna" e que te tenho ofertado algumas dores de cabeça com os meus “resultados”. Porém, sei que nunca ambicionaste que atingisse a perfeição - valha-nos ao menos isso, pois seria uma tarefa impossível - e que até houve alturas em que te fiz rir às gargalhadas com os meus devaneios, as minhas histórias, os meus sonhos... sempre adiados. Outras houve em que, por minha causa, te emocionaste até às lágrimas e, em abono da verdade, outras, ainda, em que abanaste a cabeça, ficaste sério, pensativo e, não dizendo, disseste - Fizeste asneira! Fiz tantas, pai. Todavia, nunca te afastaste de mim, nunca me afastaste de ti, aceitaste-me sempre com os meus defeitos e as minhas qualidades - e não é por acaso a ordem pela qual coloco os dois substantivos…
Afirmas, constantemente, que tiveste muita sorte com os filhos que Deus te presenteou. No meu caso, sofres de miopia crónica, certamente...
Uma coisa é indiscutível, uma parte de mim – a melhor - herdei-a de ti. Devo-te isso.
Todo este testamento a propósito de quê, pai? Ah... já sei. Porque, ontem, quando estávamos sozinhos e te perguntei, olhos nos olhos - Onde foi que me perdi? Como? Onde gastei as expectativas que tinham em mim? - a tua resposta fez-me sorrir de terna emoção . Sem displicência, mas sem paternalismo senil, respondeste - Não te preocupes. Tu és a filha que sempre quis ter. Não queria outra. E tens a vida inteira para te encontrares. Além disso, não me parece que andes perdida, apenas desencontrada. Tive vontade de te abraçar muito e de chorar. E fiquei com a certeza de que mil vezes que partisse, mil vezes estarias à minha espera.
É por tudo isto que, olhando os teus cabelos brancos que começam a rarear, o teu rosto marcado por bastantes rugas - a maior parte provocada por mim, sem dúvida - observando uma certa tremura nas mãos - essas mãos, pai, outrora tão seguras, exactas, confiantes – é por tudo isto e muito mais que desafio aquela figura sinistra a ousar aproximar-se de ti. Ambos sabemos que ela te ronda , embora os outros pareçam fingir que não a vêem. Mas, enquanto tu a esperas com a dignidade que sempre demonstraste ao longo da tua vida, eu escorraçá-la-ei com o desafio, a não-aceitação e a teimosia que sempre foram minhas linhas-mestras.
E sabes porquê? Porque não sei como aguentar viver sem te ouvir dizer - Está tudo bem. Não tens de ter vergonha das tuas falhas, dos teus sonhos… É tão fácil confundirmos tudo: as verdades, as mentiras, a realidade, as ilusões… Não somos deuses, filha. Permite-te viver. Faz da tua vulnerabilidade uma força. Mas não desperdices a tua vida. Não te contentes com despojos. Reivindica o que é teu por direito. Sê feliz!